Não mais!

Não mais a inocência estampada,
tatuada no rosto,
no gosto,
nos traços,
nos passos da ingenuidade.
Tenra idade,
quando a verdade
feito um baluarte
sustentava a vida
chamada Felicidade.
Não mais a magia do encanto,
do surpreendente
rondando os cantos,
do inesperado sendo realizado,
da alegria em sorriso franco.
Não se escrevia:
via-se a poesia,
pintada em um cenário surreal,
interpretada pela euforia
de cada coração
onde a emoção brincava
além das fronteiras
ultrapassando o ápice da abstração.
Não, agora não mais assim.
Nada acabou,
tudo se transformou.
A ingenuidade virou maturidade,
a inocência chegou ao fim.
Felicidade se reduziu a momentos
poucos,
parcos,
finitos enfim.
A vida mostra uma outra face,
cara lavada,
sem disfarces.
O mundo ficou pesado,
profundo,
o sorriso não sai espontâneo,
o encanto gera desencanto,
mas ainda resta a poesia.
Nada ou ninguém irá roubá-la.
Ela traz a primavera todo dia,
bailando no ar.
Vibra a emoção adormecida
permeando sonhos
que persistem,
refletidos nas flores,
nas cores,
nos amores que ainda existem,
vivos em lembranças
que, hoje,
se chamam Saudade.

Sem Poesia!

Senhor, perdoa-me o despautério.
Devolvo-te a inspiração.
Sinto cometer um adultério,
traindo a voz do coração.
Meus versos perderam a alegria,
caminham sisudos pela poesia.
Meus lábios não dizem o que sinto,
contradizem minhas palavras,
meu olhar.
Tento enaltecer o amor
que, de tão raro, se codificou.
Quero descrever o belo
que perdeu o viço
e se esfacelou.
Perdi-me no compasso,
tropecei nas rimas,
fugi de meu estilo
buscando o que me anima
e, a cada passo,
um descompasso me abomina
e o poema segue falso,
sem autoestima.
Por isso, meu Senhor,
me encontro à deriva.
Para que inspiração
se falta emoção?
Para que a poesia
se já não há fantasia?
Não sei se me perdi
ou me perdeu a vida.

Mundo!

Lá fora me chama o tempo
e, incansável,
meu nome proclama
ecoando nas marolas do vento,
ora brando,
ora turbulento.
Aqui dentro,
mundo imaginário,
eu me retranco.
Burlo as leis do calendário,
horas,
dias,
meses
e anos
e deixo o tempo ir,
sem resposta,
sem realizar o que mais gosta.
Retiro as travas da alma,
libero o que me acalma:
emoções sinceras e retidas
que, em catarse,
se manifestam
contra as opressões da vida.
Abro uma janela no peito,
meio que sem jeito,
exangue,
e a luz,
antes como um bumerangue,
penetra agora interior adentro,
reacendendo minha existência,
meu pensamento,
minha essência.
Revela o amor adormecido
na invisibilidade da abstração,
entre as metáforas,
escondido,
nos textos mudos
e não ditos,
nas entrelinhas da composição.
Ah, tempo,
passe a contento,
não mais importa
que me chame o vento,
pois no mundo em que me adentro,
a poesia rompe
ao romper o dia,
o amor é amor de fato,
é nato
e a fantasia se tornou real.

Arte!

Arte

Caminho
o percurso de sempre.
Percorro o que não condiz com minha mente.
Um desassossego invade meu ser,
arrasta-me para ver o que ali não existe.
Sussurra-me aos ouvidos: ouça!
Paro,
mas a inquietude persiste.
A melodia insiste em ressoar
a trilha sonora que me persuade.
Uma força misteriosa me invade.
Rendo-me.
Deixo-me levar por ondas magnéticas
até onde o sonho permite.
E ele jamais impõe limite.
Minh’alma deixa aquele lugar.
Lá estou e não estou.
Sem impasse, encaro o desafio.
Reconheço-me na arte,
no que me impactou,
em toda a beleza que se esconde
na pura expressão de amor:
força movedora a segurar o tempo.
Arrebatada pelo mistério de sua magnitude,
vejo toda a plenitude de seu esplendor
e ainda me sinto faminta de vida interior.
Comparo.
Arte está imbuída na mística da fé.
Ambas ocupam o mesmo patamar.
Movem,
comovem,
removem.
E de lá volto ao mesmo lugar
onde me deixei levar,
meu cais,
com a grata sensação
de ter conhecido a paz.

Espera!

Quando tu não vens,
meus olhos se perdem
no escuro.
Meus pés
não tocam o chão.
Flutuo
entre densas nuvens:
te procuro em vão.
Como olhar as estrelas,
se elas se escondem
no teu olhar?
Sinto-me tão só.
A lua não aparece.
E, de manhã,
nem sei mais
onde nasce o sol.
Quando não vens,
meus braços ficam vazios,
faz frio
no meu coração.
Minh’alma
fica em silêncio,
emudece em solidão:
não escuto mais
aquela canção.
Pensas
que em algum momento
tua flor te esquece?
Ela arrefece
sem teus passos
no jardim.
É assim:
tua flor de jasmim
renasce
apenas quando tu vens.

Miriam Portela

Fábula!

Entediante é a vida
nua,
concreta,
vivida.
E eu já não cria
na existência de laços,
espaços,
anjos,
fantasia.
Sem compartimentos
para armazenar alegria,
passei a arrastar-me
na brancura dos dias.
Eis que sem entendimento,
à minha revelia,
fui levada a mundos
tão diversamente leves
onde o viver me aprazia.

Miriam Portela

Saciedade!

A saciedade
mais a fome
trouxe-me
a fartura,
e lembrou-me o jejum.
Veios se abriram,
sangrando.
Uma sede inesgotável
nasceu.
Ausências me povoaram
e um medo antigo
ocupou-me.
A saciedade me penetrou
com seus vazios,
encharcando-me
de esperas.

Miriam Portela

Impressões!

Estou de passagem,
tu sabes.
Estás de passagem,
eu sei.
Deixa que eu grave
em minhas digitais
a tua travessia
ou
deixa que eu grave
minhas digitais
em tua travessia.
Tanto faz!

Miriam Portela

Hei!

Hei de amar-te:
com a lucidez dos cegos,
com a serenidade dos pródigos,
com a urgência dos meigos,
com a volúpia dos mártires.
Hei de amar-te:
no abandono dos sustos,
no intervalo das dores,
no revés dos sonhos.
Hei de amar-te:
apesar dos limites do corpo,
durante a suspensão dos medos,
com a delicadeza
que a dor me imprimiu.

Miriam Portela

Percepções!

Quando dei por mim
o mundo havia mudado.
Parei,
embora o tempo não houvesse parado.
As pessoas já não eram as mesmas.
Afeições,
aflições,
feições,
expressões.
Estranhei.
Procurei olhar bem por dentro,
talvez algum indício em cada uma,
um sinal que preenchesse essa lacuna
ou me guiasse onde as pudesse achar.
Ou me achar.
Divaguei.
Fiz da ilusão passaporte para o indefinido.
Por onde andei esse tempo todo?
Criei com minhas mãos terrível engodo.
Nele mergulhei.
Fuga insensata de querer permanecer,
viver a utopia da poesia que criei
onde o mundo era exatamente o que sonhei.
Vi-me só ante a multidão que desconhecia,
a mesma da qual me dispersei e pertencia
e agora se afasta sem sequer me entender.
Despertei.
Perdi a contagem dos dias,
dos meses,
dos anos,
das madrugadas varadas em desenganos,
das manhãs em que nem via o sol nascer
mas o descrevia como quem sempre o vê,
sentindo seu calor e luminosidade,
brilho ilusório de felicidade.
Impossível voltar atrás no tempo,
dizer às pessoas o que não foi dito,
que me perdi no que foi escrito
e foi escrito tudo o que senti,
o que vivi
e onde renasci.

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